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Divulgamos a intervenção de Frederico Carvalho na sessão pública «Pelo Fim das Armas Nucleares», promovida pelo CPPC no âmbito da campanha pela adesão de Portugal ao Tratado de Proibição de Armas Nucleares, lançada pelo CPPC, na qual se integra igualmente a petição que pode ser assinada na Internet (http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=nao-armas-nucleares).

A intervenção:

GUERRA E PAZ: UM NOVO OLHAR

Há razões para acreditar que a ameaça nuclear é, nos dias de hoje, a mais séria das ameaças que pesam sobre as sociedades humanas e sobre o planeta, nossa casa comum. O número de explosivos nucleares que chegou a ultrapassar 60 mil no período mais “quente” da guerra fria, passe a expressão, foi sendo substancialmente reduzido a partir de meados da década de 80 do século passado. Hoje nos arsenais militares das nove potências nucleares contam-se cerca de 10 mil cabeças nucleares. Destas, cerca de 4 milhares estão operacionais e destas, ainda, cerca de duas mil são mantidas em estado de alerta máximo, prontas a ser mobilizadas em poucos minutos. A potência explosiva total das armas existentes é equivalente a cerca de mil milhões de toneladas de TNT (50 mil bombas de Nagasaki). Noventa por cento deste arsenal nuclear é detido pelos EUA e pela Federação Russa. Entretanto todas as potências nucleares, grandes e pequenas, prosseguem activamente actividades de modernização ou de melhoramento dos respectivos arsenais nucleares. As cinco potências nucleares que ratificaram o Tratado de Não Proliferação das Armas Nucleares fazem-no sem formalmente desrespeitar o Tratado pois o seu articulado não o proíbe. Entretanto, ao fazê-lo, seguem um caminho oposto ao preconizado no Artigo VI do mesmo Tratado, caminho que deveria conduzir, num prazo razoável, à proibição das armas nucleares e ao desarmamento geral e completo sob controlo internacional. Não houve até hoje qualquer movimento nesse sentido — antes pelo contrário — por parte das potências nucleares signatárias do Tratado.

Neste contexto importa sublinhar dois aspectos que marcam o Tratado de que nos ocupamos: por um lado, o Tratado é discriminatório, na medida em que confere às potências nucleares signatárias direitos que nega aos estados que não possuem tais armas. Por outro lado, nada há no Tratado que deslegitime a aquisição, desenvolvimento ou posse de armamentos nucleares por estados não signatários. No quadro geopolítico actual uma potência não nuclear que, com fundamentadas razões, se sinta ameaçada por uma potência nuclear agressiva, pode desde logo retirar-se (ou ter-se já retirado) do Tratado, podendo então legitimamente procurar dotar-se ela própria e pelos seus próprios meios, de armamento nuclear. Se isto acontece e parece acontecer, a probabilidade do recurso à arma nuclear pela potência dominante nesse confronto a dois, torna-se mais provável, com o risco de envolvimento de outras potências nucleares e inevitáveis consequências fatais para a vida na Terra.

No decurso da guerra fria a posse de armas nucleares foi um factor de dissuasão que permitiu que se mantivesse certo equilíbrio entre forças opostas entre si e evitado um conflito generalizado. O equilíbrio era instável e é hoje porventura mais instável ainda.

Um conflito pode eclodir por acidente ou erro de sistemas de alerta precoce, que, aliás, já se verificaram no passado. Certas decisões político-militares de uma parte podem fundamentar da outra parte a convicção da iminência de um ataque nuclear preventivo e levá-la a reagir. Não faltam exemplos. Desde logo a decisão tomada unilateralmente em 2001 pelos EUA de denunciar o Tratado Antimísseis Balísticos (ABM) assinado em 1972 com a União Soviética. Também, em anos recentes, o importante reforço de meios militares da NATO na vizinhança imediata das fronteiras terrestres e marítimas da Federação Russa e da República Popular da China. E ainda o lançamento pelos Estados Unidos de um ambicioso programa de modernização da componente nuclear das suas forças armadas, envolvendo não apenas os explosivos nucleares mas as três componentes da chamada “tríade nuclear”, isto é, as três componentes de um arsenal nuclear estratégico capaz de projectar os explosivos nucleares (nuclear warheads) em direcção a alvos pré-seleccionados. As componentes da tríade são os mísseis balísticos intercontinentais estacionados em terra; os bombardeiros estratégicos e os mísseis balísticos disparados de submarinos. O referido programa de modernização dos meios nucleares militares foi lançado por Barak Obama, Nobel da Paz de 2009, e estende-se ao longo de trinta anos, com um custo total superior a um milhão de milhões de dólares americanos a preços correntes. A decisão de arrancar com o programa de modernização nuclear militar é de 2016, nove anos depois do famoso discurso de Praga em que Obama afirmou que os EUA como única potência nuclear “que usou a arma nuclear“, tinham a responsabilidade moral de agir no sentido, deve entender-se, da desnuclearização militar global, pois sublinhou “o compromisso da América de procurar a paz e a segurança de um mundo sem armas nucleares”. Afirmando ainda que os EUA dariam passos concretos para atingir esse objectivo. Como se sabe, o caminho que hoje está a ser seguido é exactamente o oposto, caminho naturalmente abraçado sem hesitação pelo sucessor de Barak Obama. Não receamos ser desmentidos se dissermos que o mesmo aconteceria com a senhora Hillary Clinton. Em nosso entender a política americana, em particular no que respeita à defesa, é comandada não pela Casa Branca mas sim pelos interesses do chamado complexo militar-industrial que fora já denunciado, no seu tempo, por Dwight Eisenhower como potencial ameaça à democracia estado-unidense. Entretanto, sabe-se que as outras duas grandes potências nucleares militares, a Federação Russa e a China, prosseguem activamente trabalhos de desenvolvimento dos respectivos meios militares nucleares e de outros que se apoiam nos progressos fulminantes da robótica e da inteligência artificial.

O programa americano de modernização nuclear militar foi apresentado ao público como um esforço no sentido de assegurar a fiabilidade e segurança das armas nucleares operacionais já existentes nos arsenais militares e não no sentido da introdução de aperfeiçoamentos técnicos destinados a aumentar o seu poder de destruição dos alvos a atingir. Não é isso que está acontecer. Foram introduzidas modificações técnicas assentes em tecnologias novas, revolucionárias, que permitem aumentar de forma importante a precisão de tiro dos mísseis balísticos americanos.

Segundo Hans Kristensen, da Federação dos Cientistas Americanos, o ganho na precisão de tiro “é espantoso — aumentando cerca de três vezes o poder destrutivo global da actual força de mísseis balísticos dos EUA — e criando assim exactamente aquilo que se esperaria ver se um estado que possua armas nucleares planeasse dispor da capacidade de desencadear e vencer uma guerra nuclear desarmando os inimigos por meio de um ataque surpresa”.

Não duvidamos da vontade de paz da grande maioria dos habitantes do planeta, onde se inclui o povo americano, e do seu comum desejo de impedir que alguma vez seja desencadeada uma guerra nuclear ou sequer que voltem a ser utilizados explosivos nucleares, mesmo de forma limitada, como aconteceu em Hiroshima e Nagasaki. Testemunho de tal vontade é dado pela aprovação em Julho passado nas Nações Unidas do Tratado de Proibição das Armas Nucleares que é o primeiro acordo internacional juridicamente vinculativo que proíbe de forma abrangente as armas nucleares com o propósito de levar à sua eliminação total. O Tratado foi aprovado por uma esmagadora maioria de 120 membros das Nações Unidas. Houve una abstenção e um voto contra. Este partiu da Holanda, único país membro da NATO que entendeu estar presente. Todos os outros membros da NATO e todas as potências que possuem armas nucleares não se fizeram representar. A Suécia que tem acordos de parceria com a NATO manifestou desde o início uma posição de princípio favorável ao Tratado e encara a possibilidade de vir a assiná-lo. Vários estados membro da NATO não possuidores de armas nucleares e também o Japão e a Austrália, fundamentaram a sua recusa do Tratado na consideração de que as armas nucleares dos Estados Unidos são garantia da respectiva segurança. Outros consideraram que o Tratado como instrumento conducente à abolição das armas nucleares, será ineficaz, antes preconizando que sejam dados passos concretos no sentido de levar à prática o disposto no Artigo VI do Tratado de Não Proliferação das Armas Nucleares.

O Tratado de Proibição Total das Armas Nucleares foi aberto à assinatura e ratificação pelas partes em 20 de Setembro último. Nesse dia 53 estados assinaram o Tratado e outros 3 fizeram-no posteriormente. Entretanto à data de hoje apenas 3 estados depositaram os instrumentos de ratificação. A assinatura é apenas uma manifestação da intenção de vir a ser parte do tratado. A ratificação é indispensável e, nos termos do Tratado este só entrará em vigor 90 dias após ter sido ratificado por 50 estados. Um dos três estados que depositaram já o respectivo instrumento de ratificação foi a Santa Sé.

No dia 10 de Novembro, Dia Mundial da Ciência para a Paz e o Desenvolvimento, instituído pela UNESCO, abriu no Vaticano um Simpósio Internacional sobre Desarmamento e Desenvolvimento. Na sessão de abertura Francisco Bergoglio afirmou o seu entendimento de que “a existência de armas nucleares cria um falso sentimento de segurança mantendo as relações internacionais como refém e sufocando a coexistência pacífica. (…) Toda a ameaça de as utilizar, assim como a sua posse, devem ser firmemente condenadas. (…) A política de dissuasão nuclear não é mais aceitável. (…) As armas nucleares estão ao serviço de uma mentalidade do medo que atinge não só as partes em confronto mas toda a humanidade.”

O voto pela proibição definitiva das armas nucleares à luz do direito internacional, que teve lugar na sede das Nações Unidas em 7 de Julho último, deve ser saudado como proclamação de uma aspiração profunda da Humanidade para a salvaguarda da vida sobre a Terra contrariando a tirania dos negociantes da morte onde quer que se encontrem. É um passo histórico no caminho da Paz apesar de todas as contradições e dos obstáculos que se levantam nesse caminho.
Como foi sublinhado pela “Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares” (ICAN), “armamentos ilegalizados são cada vez mais olhados como meios à margem da lei, perdendo estatuto político e com ele os recursos necessários à sua fabricação, modernização e posse.”

Frederico Carvalho
Membro da Presidência do Conselho Português para a Paz e Cooperação
Presidente da Direcção da Organização dos Trabalhadores Científicos
16 de Dezembro de 2017